Hans Christian Andersen escreveu
“apenas viver não é suficiente. (…) É preciso ter sol, liberdade e uma pequena flor.”
Na história do nosso país, existe uma flor que, a 25 de abril de 1974, se tornou um símbolo da liberdade de todos os Portugueses.
Como era viver em Portugal antes do dia 25 de abril de 1974?
Manuel António Pina: Costumo chamar a Portugal antes desse dia o País das pessoas tristes. As pessoas não podiam fazer o que queriam ou dizer o que pensavam ou sentiam, nem sequer podiam visitar outros países e conhecer outros povos. Viviam fechadas no seu país como se ele fosse uma prisão.
José Jorge Letria: Os únicos que saíam do país eram os que iam para a guerra ou os que conseguiram fugir para não ter de combater nela. Nessa altura, milhares de jovens portugueses foram obrigados a combater na Guerra Colonial, em África. É quase certo que algum homem da tua família esteve nessa guerra. Talvez um tio ou, quem sabe, o teu avô.
Manuel António Pina: Imagina como seria não poderes fazer o que querias, não poder ouvir as músicas nem ler os livros e as revistas de que gostavas — apenas poder ler e ouvir o que não era proibido. Nem sequer podias beber Coca-Cola, porque também era proibida! As raparigas e os rapazes não podiam conversar nem conviver uns com os outros e tinham de andar em escolas separadas e brincar em recreios separados por muros e por grades.
Quem decidia o que era proibido e como?
José Jorge Letria: Quem governava o país nessa altura era um homem chamado António de Oliveira Salazar, que esteve no poder durante mais de 40 anos. Era um homem de poucas falas, muito desconfiado e solitário. Praticamente não confiava em ninguém. Tomava as decisões sozinho e ai de quem o tentasse contrariar! Foi ele quem instaurou o chamado regime do Estado Novo em Portugal.
Valdemar Cruz: Para controlar se as pessoas obedeciam às ordens do regime, havia uma polícia que vigiava os movimentos e as opiniões de todos – a Polícia Internacional de Defesa do Estado, ou PIDE. Pensa numa coisa de que tenhas muito medo. A PIDE era isso. Era a noite e o medo da noite.
José Jorge Letria: Para além disso, não existiam eleições livres. As pessoas que ocupavam cargos como Presidente da Câmara ou deputado eram escolhidas com base na confiança que o regime depositava nelas. Até mesmo o Presidente da República era escolhido por Salazar. Era como se ele fosse o menino rico da rua, que é dono da bola, do campo de futebol, das chuteiras e dos equipamentos e que, na hora de preparar o jogo, escolhe a equipa toda, decide quem joga e quem não joga, quem é expulso e quem permanece em jogo. Até escolhia o resultado, mesmo antes de o jogo começar! A isto chama-se ditadura.
Qual é a diferença entre a ditadura e a democracia, o regime em que vivemos atualmente?
Alice Vieira: Para além de as pessoas não poderem eleger quem queriam, na ditadura existia uma coisa chamada censura. Todos os dias eram presos estudantes pois faziam greve e manifestações para mostrar o seu descontentamento e isso era considerado ilegal. A polícia prendia-os e agredia-os e, no dia seguinte, nos jornais, a censura não deixava que fosse publicada nem uma palavra sobre o assunto. Nem na televisão, evidentemente. Parecia um filme de ficção científica, sabes? Vivíamos coisas que para as outras pessoas não existiam.
José Jorge Letria: Pelo contrário, quando vivemos em democracia as diferenças de opinião são aceites e as pessoas são livres de votar em quem quiserem. Até ao 25 de abril de 1974, não havia democracia e, portanto, não havia nenhuma das liberdades que fazem parte dela – a liberdade de opinião, de expressão do pensamento e de associação. Por causa disso, quem tomasse posição publicamente sobre o regime ou sobre a guerra, era preso e maltratado.
Sérgio Godinho: Vários músicos, como eu, foram presos ou tiveram de fugir do país durante a ditadura, por cantarem sobre a liberdade e o sonho da democracia. Numa das minhas canções há uma frase conhecida que diz que a democracia é o pior de todos os sistemas, com exceção de todos os outros. Isso quer dizer que não é um sistema perfeito, mas continua a ser o melhor que temos.
O que aconteceu no dia 25 de abril de 1974?
Zeca Afonso: Esse dia começou com música. Primeiro, a canção E depois do Adeus, de Paulo Carvalho, ecoou na rádio. Depois, a minha canção, Grândola, Vila Morena. Possivelmente já a ouviste, mas, na altura, era uma canção proibida. Como era também proibido qualquer tipo de ajuntamento e, sobretudo, de protesto, os soldados — que vieram a ficar conhecidos como Capitães de Abril — utilizaram estas duas canções como sinal para darem início ao golpe de Estado que derrubaria a ditadura.
Manuel António Pina: Quando as tropas começaram a tomar os quartéis e foi possível começar a sentir os ventos da mudança, toda a gente saiu alvoroçadamente para a rua e acompanhou os soldados cantando e gritando: «Viva a liberdade!». As janelas encheram-se de bandeiras e de cravos vermelhos. Por todo o lado, pessoas marchavam pelas ruas com cravos vermelhos ao peito e os soldados puseram-nos nas suas espingards.
Matilde Rosa Araújo: É por isso que a Revolução de 25 de abril de 1974 ficou também conhecida como a Revolução dos Cravos. Na rua, mães choravam enquanto seguravam os filhos, pois haviam entendido a alegria única das flores no peito de toda gente. Limpando as lágrimas, continuavam a caminhada pelas ruas húmidas de alegria, como rios livres a correrem para o mar.
Como foi acordar nesse primeiro dia em que os portugueses conheceram, finalmente, a liberdade?
Sophia de Mello Breyner: Escrevi um poema sobre isso em que se pode ler: «Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo». Esse dia foi como um novo começo, «como tempo novo / sem mancha nem vício», como escrevi num outro poema, intitulado Revolução.
Manuel António Pina: A liberdade é como o ar que respiramos: só quando nos falta e sufocamos cheios de aflição é que descobrimos que, sem ele, não podemos viver. Nesse dia, os portugueses puderam respirar de alívio pela primeira vez.
Porque é tão importante que o dia 25 de abril seja feriado nacional e que continuemos a contar a sua história?
Alice Vieira: O tempo separa muito as pessoas, e a memória vai-se gastando também. Temos de contar esta história muitas vezes, para as pessoas não esquecerem, para estarem sempre atentas e não deixarem que coisas destas voltem a acontecer.
José Jorge Letria: Quando terminou a ditadura, acabou também o silêncio que nos obrigavam a manter sobre ela. E essa foi uma das grandes vitórias do 25 de abril. Dias como este só se mantêm vivos se nos lembrarmos do seu significado e lhe dermos sentido nas nossas vidas. O 25 de abril é sinónimo de liberdade, mas a liberdade, como as plantas e as flores, acaba por murchar se não a regares com frequência.
Entrevista ficcionada, inspirada nos poemas de Sophia de Mello Breyner, nas canções de Sérgio Godinho e Zeca Afonso e nos seguintes livros:
- O Tesouro, de Manuel António Pina;
- O Soldado e o Capitão e o Cravo e o Povão, de Valdemar Cruz;
- Vinte Cinco a Sete Vozes, de Alice Vieira;
- História de Uma Flor, de Matilde Rosa Araújo;
- O 25 de Abril Contado às Crianças…e aos Outros, de José Jorge Letria.
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